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Foto do escritorCélia Aldegalega

E SE MARIA NÃO TIVESSE SIDO CRISTÃ?


Dois mil anos de influência religiosa judaico-cristã alojam culpa e medo, intersticialmente. Quem é adepto da doutrina de Jesus, não se esquiva a uma forma residual de má consciência quando se depara com a dúvida, ou deteta matéria criticável nas narrativas cristãs e no discurso atribuído a Jesus. As interpretações cristãs ortodoxas neutralizaram a abordagem literal dos evangelhos, e tornou-se difícil empreender a leitura pragmática do que os textos dizem. Aqui se exerce um pequeno exercício de análise de alguns aspetos da construção do culto Mariano.


Apesar de ser a figura feminina mais famosa do mundo, icónica referência na Igreja Católica e nos vários cultos cristãos institucionalizados, nos primórdios do cristianismo Maria foi remetida à quase invisibilidade, ainda que nos primeiros dois séculos do movimento cristão, entre gnósticos, profusos movimentos sectários, e o ramo ortodoxo que vingou, as mulheres tenham tido equitativos papéis: ensinavam, batizavam, ministravam a eucaristia, evangelizavam, exercitavam o carisma profético, quer dizer, a mediunidade.


Há várias versões do seu nascimento, e não se sabe quando, onde, e como morreu, não há praticamente dados biográficos de Maria, a mulher foi apagada pelo mito. Sobre a Imaculada Conceção, é de dois dos evangelhos sinóticos que podemos extrair contraditórios.


Estão lá fora a tua mãe e teus irmãos que te procuram;" Ele respondeu: "Quem são minha mãe e meus irmãos?..." E percorrendo com o olhar os que estavam sentados à volta dele, disse: "Aí estão minha mãe e meus irmãos. Aquele que fizer a vontade de Deus, esse é que é meu irmão, minha irmã e minha mãe." (Marcos, 3, 31-35.) "Tua mãe e teus irmãos estão lá fora e querem ver-te". Mas Ele respondeu-lhes: "Minha mãe e meus irmãos são aqueles que ouvem a Palavra de Deus e a põem em prática..." (Lucas, 8,19-21.)


A perspetiva religiosa induz a interpretação apologética, quando não a decreta em nota de fim de página, de que as palavras de Jesus honram duplamente sua mãe, e glorificam o desapego de Jesus da sua própria família, priorizando a sua missão. Convenhamos que qualquer mãe ficaria desgostosa ao ter conhecimento de tais palavras, que ressumam um desconcertante desdém.


Estas passagens dos evangelhos declaram que Maria e os irmãos não eram discípulos, sequer acólitos, de Jesus, o que é corroborado em João «Com efeito nem sequer os seus irmãos criam nele.» (João, 7, 5). Aliás, toda a narrativa do capítulo 7 diz respeito à desconfiança mútua de Jesus e dos seus irmãos. Mãe e irmãos não estariam entre «os que fazem a vontade de Deus», ou os que «escutam a palavra de Deus e a põem em prática», e tal compromete a presciência de Maria da missão de Jesus e da sua própria missão, alegadamente anunciada por comunicação angelical, episódio que não parece ter contado aos demais filhos, descrentes. Segundo os evangelhos Maria acreditou no anúncio do «anjo do Senhor», pois no dia seguinte foi visitar a prima Isabel, grávida de João Batista, «numa cidade de Judá», região a mais de cem quilómetros da Galileia. Teria sido prodígio que a adolescente escapasse aos perigos da jornada.


A morte de Maria é também omissa, o que fomenta várias especulações. A ICAR avança com a interpretação do capítulo 12 do Apocalipse como dizendo respeito a Maria, a personagem é designada interessantemente por Mulher, mas é óbvio que se trata de uma solução frágil, à falta de melhor. A versão mais intrigante coloca-a nas Ilhas Britânicas, para onde teria sido levada para escapar às perseguições aos cristãos. Graham Phillips[1] afirma que o seu túmulo foi descoberto perto de Anglesey, no País de Gales, em 597 E.C. por Agostinho, primeiro bispo de Cantuária, mas o Papa Gregório teria intimado o bispo a manter a descoberta em segredo; e o arqueólogo Giovanni Benedetti redescobriu o túmulo, mas desistiu de divulgar o achado quando Pio XII, em 1950, proclamou tacitamente a Assunção, de que há alusões...desde o século IV.


Certo é que, em pleno século XX, o papado poderá ter resolvido um potencial embaraço decretando mais um dogma: Maria também subiu aos céus em corpo e espírito, e nem se sabe se viva ou morta -logo, não poderia existir túmulo. Se esta versão estivesse certa, atendendo a que as perseguições aos cristãos só se tornaram sistemáticas a partir do século II, que outro motivo poderia haver para desterrar Maria para as Ilhas Britânicas? Poderia tratar-se de um afastamento por conveniência de sonegar a verdadeira história?


Celso, epicurista e provavelmente platónico, no Discurso Verdadeiro[2], redigido em meados do século II, o primeiro documento conhecido de descrédito e invectivação do cristianismo a que Orígenes veio a responder com o Contra Celso, acusa Jesus de ter forjado as circunstâncias do seu nascimento. Segundo ele, Maria teria sido camponesa, e teria engravidado de um arqueiro romano referido como Pantera que há quem associe a Tibério Julio Abdes Pantera, cuja estátua funerária foi descoberta em 1859 em Bingen Am Rhein, na Alemanha. Sabe-se que a Cohors Sagittariorum esteve estacionada na Judeia, e que no ano 6 E.C. reprimiu a Revolta dos Censos, o que coloca Pantera na Galileia na época estimada para nascimento de Jesus, e é tudo. O Talmude de Jerusalém secunda Celso designando Jesus como Yeshua ben Pantera, mas a perspectiva será tendencialmente hostil, logo, pouco fiável.

 

[1] Phillips, Graham, The Virgin Mary Conspiracy, Bear & Company, 2005. [2] Celso, El Discurso Verdadero Contra Los Cristianos, Introdução, tradução e notas de Serafín Bodelón, Alianza Editorial, Madrid, 2009.


A Rebelião dos Censos foi liderada por Judas de Gamala, que se diz ser o fundador dos Zelotes, outro alegado pai de Jesus, (o que prefigura duas opções de progenitor entre dois rivais), versão extensa e intensamente defendida por Robert Ambelain,[1] e é sabido que, sobretudo desde o século XIX, têm surgido múltiplas propostas e especulações sobre o progenitor de Jesus.


O propósito do presente não é especular sobre qualquer proposta específica, muito menos perfilhar alguma, o assunto tornou-se um manancial para edições livrescas por vezes apenas sensacionalistas. Facto é que alguém teve de ser pai de Jesus, pois a razão não permite que acreditemos em milagres, e Deus não contradiz as suas próprias leis. Com o objetivo de criar um ajuste perfeito às profecias, os evangelhos selecionados (e provavelmente alterados nos séculos IV e V por monges copistas), e o discurso cristão, edificaram um labirinto de contraditórios e ambiguidades, e a contracorrente deriva muitas vezes em interpretações subjetivas e mal sustentadas, que também a nada conduzem de conclusivo.


José? É pouco mais que figurante nos evangelhos. Lucas e Mateus atribuem-lhe duas genealogias distintas.[2] Assim, Lucas faz remontar a genealogia de Jesus a Natan, e Mateus a Salomão. Mas se Jesus não era filho biológico de José, mais certo seria que se remontasse à da mãe.


Entre o discurso oficial que faz ascender Maria à santidade tornando-a assexuada, branqueando-a, mantendo-a invisível enquanto mulher, e os discursos de detratores vetustos que a remeteram a adúltera, apenas há em comum serem discursos masculinos, e por alguma razão há acolhimento à proposta de Pantera entre movimentos feministas.

A única certeza que se pode ter é que a história está muito mal contada, e os factos terão sido manipulados para endossar dogmas, e edificar um modelo feminino. Maria é o que as mulheres deveriam ser, desde logo um parâmetro impossível de alcançar, já que a nenhuma mulher é dada a habilidade de ser mãe e virgem, ou vice-versa. A outra polaridade é Eva. E Eva é o que a mulher é. Não seria desagradável ter como modelo uma mulher que transgrediu, e desafiou a autoridade reclamando conhecimento, mas acontece que a perspectiva das religiões abraâmicas é a conferência de caráter pouco fiável, truculento e pecaminoso a Eva, da qual Maria é remissora, mas como já referido, modelo inigualável.

 

[1] Ambelain, Robert, Jesus ou o Segredo Mortal dos Templários, Robert Lafont, Paris, 1970. [2] Lucas (3, 23-38); Mateus (1, 1-16).





Célia Aldegalega - Lisboa - Portugal

Agente Cultural, Formadora, Escritora

Membro do MOVMMESP

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2 Comments


Sandra Regis
Sandra Regis
Dec 23, 2022

Texto maravilhoso, Célia.

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Maravilhoso texto sobre a triste realidade a que nós, mulheres estamos relegadas.

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